Por Sergio Dias & Igor De Lazari
Embed from Getty ImagesA vida humana tem um preço? Essa pergunta, embora moralmente desafiadora, é cotidianamente respondida em tribunais brasileiros, especialmente quando se trata de indenizações por danos morais decorrentes de uma morte. O que se observa, contudo, é um cenário de profunda subjetividade e disparidade, levantando questões sobre a equidade e a uniformidade da Justiça.
No Brasil, a quantificação da indenização por danos morais carece de critérios objetivos claros. Não existe uma fórmula rígida nos tribunais, e as tentativas legislativas de fixar valores por meio de “tarifação” são consistentemente rejeitadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Essa ausência de um parâmetro legal prévio fomenta o que se chama de “particularismo”, onde cada caso é avaliado individualmente, levando em conta aspectos subjetivos das relações familiares e sentimentais.
O Dilema: Casuísmo vs. Generalização
A doutrina jurídica brasileira, em sua maioria, privilegia a abordagem particularista, defendendo que a discricionariedade judicial permite uma reparação mais “integral” e adequada à individualidade de cada prejuízo sofrido. O particularismo busca a “justiça do caso concreto”, adaptando a decisão às peculiaridades de cada situação para evitar resultados “injustos” que poderiam surgir de regras muito gerais.
Entretanto, é exatamente nesse ponto que reside um dos maiores problemas: ao conceder uma ampla margem de ação aos julgadores, o particularismo pode gerar indenizações excessivas ou, inversamente, insuficientes, baseadas em critérios individualistas e até mesmo em “idiossincrasias decisórias”. A imperfeição do particularismo, portanto, deriva da liberdade do julgador em dar pesos diferentes a circunstâncias diversas, resultando em valores díspares para danos que, no fundo, são os mesmos – a lesão gerada pela perda de uma vida.
Em contraste, a ideia de “generalização”, defendida por estudiosos como Frederick Schauer, propõe que decisões devem ser tomadas com base em regras que impliquem resultados mais uniformes. Defender a generalização significa que um valor “x” deveria ser adotado como ponto de partida para qualquer reparação de dano moral decorrente de morte, independentemente da pessoa atingida ou do contexto. Isso promoveria a previsibilidade e a uniformidade de tratamento, valores essenciais ao Estado de Direito e à redução da arbitrariedade judicial.
O STJ e as Disparidades jurisprudenciais
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), responsável por uniformizar o Direito, tem adotado movimentos em direção à generalização. Adotou um critério “bifásico” para fixar compensações, onde a primeira etapa considera valores de casos já avaliados pela instância superior (com parâmetros entre 300 e 500 salários-mínimos para o dano-morte, devidos a cada legitimado), e a segunda etapa atenta para os detalhes do caso concreto. Contudo, persiste uma “lacuna jurisprudencial” sobre como comparar os casos na primeira etapa, e há divergências sobre o que exatamente se indeniza: a morte em si (“dano-morte”) ou os abalos psicológicos nos sobreviventes (“dano por ricochete”).
O problema mais grave surge na prática. A análise de julgados do STJ revela que a confiança depositada na discricionariedade dos juízes de primeira e segunda instâncias leva a uma disparidade significativa nas indenizações. Isso ocorre majoritariamente porque o STJ, como regra, não revisa o quantum indenizatório fixado por tribunais inferiores, alegando que isso implicaria em reexame de provas, o que é vedado pela Súmula nº 7 do tribunal.
A Vida de um Detento Vale Menos? Uma Disparidade Alarmante
Um exemplo flagrante dessa distorção é a diferença no valor das indenizações por morte de detentos. Dados apresentados no estudo publicado pelos autores na Revista Civilística demonstram que a média de indenização para a morte de detentos é de R$ 67.073,70, enquanto para crianças/adolescentes é de R$ 126.478,46 e para “outros” (demais categorias) é de R$ 115.111,00. Isso significa que a indenização por morte de detentos é quase 50% inferior à de “outros” e significativamente menor que a de crianças/adolescentes, representando uma diferença de aproximadamente 88% em relação a este último grupo.
Essa diferença alarmante reflete preconceitos e subjetividades, levando a reparações desproporcionais. Tal distribuição desigual sugere que a “qualidade” ou o “status” do ofendido influencia o valor da indenização, o que pode configurar uma forma de discriminação indireta, onde uma prática aparentemente neutra gera consequências desiguais para diferentes grupos sociais. Decisões de instâncias inferiores chegam a manter indenizações irrisórias (como R$ 20.000,00 ou R$ 15.000,00 para morte de detento), enquanto em outros casos o próprio STJ majora valores de R$ 80.000,00 por considerá-los “irrisórios”, reafirmando a faixa de 300 a 500 salários-mínimos.
A Necessidade de Parâmetros Objetivos
O particularismo, ao permitir que cada juiz encontre um valor “justo” para cada caso, acaba por gerar uma “loteria” indenizatória e arbitrária. Um sistema baseado na generalização, por outro lado, garantiria que a indenização começasse em um patamar previsível e uniforme, promovendo a consistência do sistema jurídico.
Para corrigir as disparidades e combater a discriminação indireta, é fundamental estabelecer parâmetros mais claros e uniformes para a fixação de indenizações por danos morais. Um critério geral, passível de controle pelo STJ, evitaria a desvalorização de certas vidas, como a de detentos. Isso não significa comprometer a dignidade humana ou o princípio da reparação integral, mas sim reduzir a arbitrariedade e proporcionar maior uniformidade na aplicação da justiça. A busca por parâmetros objetivos e gerais é crucial para garantir que, perante a lei, toda vida tenha um valor semelhante e seja tratada com a mesma dignidade.

Igor De Lazari
Mestre em Direito (FND/UFRJ)

Sergio Dias
Doutorando em Direito (UFRJ) e Juiz Federal da Justiça Federal da 2ª Região
Baseado no artigo “Entre o generalismo e o particularismo: quanto vale a vida?”, publicado na Civilistica.
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