O Surgimento do Estado de bem-estar social

Por Marcelo Tavares

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Estado de Bem-Estar, Welfare State, Estado Providência ou Estado Social de Direito pode ser definido como aquele que garante um mínimo de renda, alimentação, saúde, habitação, educação, enfim, um conjunto de direitos sociais aos cidadãos, além das proteções mais diretamente ligadas às liberdades clássicas: liberdade de ir-e-vir, de expressão e de manifestação do pensamento, religiosa e de crença, e de proteção da propriedade privada. Tem por finalidade produzir bem-estar, alargando a dimensão da dignidade humana para além de uma exigência de não fazer (ou seja, de uma obrigação de abstenção) por parte do Estado. Por outro lado, e em decorrência, inaugura a aptidão de um novo tipo de controle dos atos estatais, qual seja, o da mensuração científica quantitativa (e qualitativa) do gasto público no orçamento.

Não é um Estado de Direito não liberal, bem como não é uma estrutura de meio-termo entre o modelo liberal e o modelo socialista, como pode parecer, à primeira vista, equivocadamente. Pelo contrário, é um Estado eminentemente liberal, pois baseado no respeito aos direitos individuais, à separação de poderes, ao acesso a um Judiciário independente, à prevalência da Constituição e da lei, bem como não rompe com o modelo econômico capitalista e com o princípio da autonomia privada. Ele dá contorno modificado à compreensão do direito de propriedade (que deve atender ao interesse social) e no qual o poder público intervém na ordem econômica e na ordem social com objetivo de regular as relações entre particulares e de atender a outros princípios, como o da redução da desigualdade social, fortalecendo a dignidade da pessoa humana.

O Estado Social, sem abrir mão da proteção da liberdade do indivíduo, assume uma postura ativa para garantir a igualdade de chances e a aplicação do princípio da solidariedade, no pressuposto de que não há liberdade na miséria e na ignorância. É, pois, um Estado no qual há comunicação entre os interesses gerais do indivíduo, da esfera privada, do mercado capitalista, com o interesse público de natureza social e econômica.

O modelo do Estado de Direito e o respeito à democracia são as plataformas de desenvolvimento indispensáveis para o Estado Providência, pois permitem a conciliação entre o capital e o trabalho, um acordo de convergência de energia humana para o bem comum.

A inovação do Estado de Bem-Estar consiste, portanto, em conseguir compatibilizar a estrutura liberal de organização com o atendimento a novas demandas da sociedade no início do século XX.

Naquele século, ao mesmo tempo em que se instituiu a obrigação de prover direitos prestacionais e de intervir na ordem econômica e na ordem social, o Estado não renunciou ao modelo Democrático de Direito: modificou-o para estabelecer alternativa legítima, tanto ao padrão e organização socialista, quanto ao autoritarismo fascista, incrementando os valores morais da sociedade, em especial, mediante a transição entre a caridade privada e a solidariedade gerenciada pelo poder público.

O Estado Providência adapta o arcabouço político-normativo do Estado burguês dos séculos XVIII e XIX aos desafios trazidos pela Revolução Industrial, em reação aos efeitos negativos da política do laissez-faire quanto ao agravamento da pobreza e da desigualdade material na sociedade.

Essa nova concepção do modelo de Estado Liberal Democrático de Direito traz-lhe contornos peculiares, mas afastados de outras duas manifestações estatais: a autoritária socialista e a autoritária fascista.

Em relação ao Estado Socialista, a diferença, quanto ao aspecto da intervenção estatal, é de qualidade e de intensidade da atuação do Estado na ordem econômica e social. Enquanto no modelo socialista as ações são objeto de profunda planificação e o poder público é posto como principal agente econômico da sociedade, no Estado de Bem-Estar Social não se rompe com o protagonismo da iniciativa privada do modelo capitalista, atuando o Estado na ordem econômica de forma regulatória e subsidiária com objetivo de diminuir disfuncionalidades do capitalismo e de reduzir a desigualdade social.

Além disso, em que pese haver, no Estado Socialista, destaque para os direitos sociais como o do trabalho remunerado, seguros previdenciários e direito à educação, os direitos individuais só nominalmente correspondem aos do Estado Liberal burguês. Eles lá não são concebidos como direitos inerentes à natureza humana e não têm reconhecida a natureza declaratória pré-existente ao Estado: estão subordinados aos interesses coletivos dos trabalhadores, manifestado pelo Partido Comunista, e devem servir na medida em que atendem à consolidação do regime. Da mesma forma, não se preveem medidas assecuratórias dos direitos de liberdade.

Quanto a isso, o Estado de Bem-Estar não deixa de adotar o modelo de reconhecimento de direitos individuais do Estado Liberal burguês (podendo trazer adequações, como o da necessidade de a propriedade atender ao fim social), adicionando-lhe os direitos sociais, que passam a integrar a concepção mais abrangente de direitos fundamentais (na segunda dimensão).

 Quando comparados a Estados autoritários, do modelo fascista, o Estado de Bem-Estar Social apresenta diferença na estrutura e na proteção de direitos fundamentais.

 É possível que Estados autoritários fascistas intervenham na ordem econômica e social para garantir mecanismos de proteção de direitos sociais, como aconteceu com a Itália sob Mussolini, ou com a Alemanha nazista (aqui, sob contorno de totalitarismo) nos anos 1930. Ocorre que a intervenção estatal, no autoritarismo de extrema direita, se dá sem observar parâmetros do Estado Democrático de Direito, além de os direitos fundamentais poderem ser simplesmente desconsiderados pelo governo. O poder, lá, não se submetia à soberania popular, o acesso a um Judiciário independente restava prejudicado, bem como não havia respeito ao devido processo legal. Além disso, não se permitiu que houvesse real oposição do indivíduo ao poder público na garantia de direitos individuais eventualmente violados.

Por outro lado, como antes colocado, a nota de toque do Welfare State é a da intervenção estatal na implementação de direitos sociais sem abandonar o paradigma do Estado Democrático de Direito.

A caracterização inovadora no Estado Providência, no ambiente liberal, é a de que, além do incremento da intervenção pública de forma sistematizada, cabe ao Estado garantir prestações positivas (de fazer ou de dar dinheiro) como direito subjetivo de natureza fundamental e como direito humano.

No modelo anterior do Estado Liberal burguês (séculos XVIII e XIX), o respeito à liberdade era visto como única exigência a se esperar do Estado. A partir do século XX, não se concebe mais o respeito à dignidade humana sem que haja mínima materialização de garantias socioeconômicas para a efetividade dessa mesma liberdade.

Os padrões liberais de segurança jurídica e de igualdade perante a lei são mantidos (o Estado Social é, antes de tudo, um Estado Liberal), mas devem ser complementados com a garantia de condições de vida, em especial, para o desenvolvimento integral da pessoa, em respeito à igualdade de chances ou de oportunidades, a partir da visão de que a solidariedade precisa ser gerenciada pelo Estado. Enquanto o modelo anterior era fundamentalmente o de um Estado legislador, este agrega funções de gestão (reforçando principalmente o papel do Executivo nas políticas públicas).     

O Welfare State realmente só é concebido na primeira metade do século XX. Seu advento decorre economicamente da Revolução Industrial, ocorrida nos dois séculos anteriores, mas está enredado em uma encruzilhada de peculiares fatos sociais e políticos, além de ser fruto de embates ideológicos ocorridos do declínio da Belle Époque até a década de 1940: (i) a Primeira Guerra Mundial e a crise de 1929/1930 e (ii) a Segunda Guerra e a nova ordem mundial estabelecida a partir daí.

As necessidades logísticas e de pessoal na Primeira Guerra exigiram que o poder público de diversos países tivesse que assumir postura mais interventiva do que havia antes como padrão na relação entre Estado e sociedade (mercado) no continente europeu e nos Estados Unidos da América. A dimensão assumida por este conflito alterou o modelo de atuação pública nas indústrias de transformação (bélica), além de exigir regulação intensa no comércio para fornecimento de gêneros alimentícios, bem como permitiu maior constrangimento nas garantias individuais decorrente da emergência do esforço de guerra.

 Modificações dessa magnitude, se ocorrem por período razoável (a Primeira Grande Guerra durou cinco anos), criam memória na sociedade, que se torna mais tolerante com o papel ativo do Estado na regulação da vida social, mudando o paradigma de que a este caberia apenas garantir paz e segurança.

Isso logo se fez sentir com a incorporação jurídico-normativa de direitos sociais na Constituição alemã de 1919.

A crise econômica de 1929 gerou, primeiro nos Estados Unidos da América, depois na Europa e em todo Ocidente, tensões sociais decorrentes da inflação, restrição de atividade econômica, crash no sistema bancário, crise no mercado de valores e dos produtos agrícolas e um desemprego considerável. O novo desafio exigiu aumento de despesas públicas para a manutenção de empregos e para garantir a sobrevivência dos trabalhadores.  

O enfrentamento da grave situação teve por fundamento a teoria econômica do inglês John Maynard Keynes desenvolvida na década de 1930. De acordo com ela, cabe ao Estado exercer o papel de estimulador da atividade econômica e com isso incrementar a criação de empregos, sem alterar a estrutura capitalista, levando ao aumento do poder aquisitivo das pessoas e gerando crescimento de produção.

Nos EUA, o Presidente Franklin Delano Roosevelt aplicou política intervencionista na economia mediante a adoção de diversas medidas de reorganização do sistema bancário, do mercado de capitais e das relações de trabalho, conhecida como New Deal.

O plano de reforma de Roosevelt dedicou-se a superar as dificuldades decorrentes das atribuições constitucionais dos estados da Federação, em matéria de legislação sobre comércio e trabalho, e a organizar um sistema abrangente de proteção contra riscos sociais, sem desrespeitar o princípio da iniciativa privada e o empreendedorismo norte-americano.

Dessas medidas, no que interessa mais à presente abordagem, foi publicado o Social Security Act em 1935, instituindo um sistema de proteção, em especial, de seguro-velhice e seguro-desemprego, com a utilização, pela primeira vez, da expressão social security (previdência social), com pretensão (não completamente alcançada) de uniformidade nacional de tratamento e estimulando os estados federados a dar a devida atenção ao tema.

A forma como os EUA enfrentaram a crise mudou a bússola do liberalismo, de Smith para Keynes, influenciou a ordem jurídica constitucional dos países e as nascentes instituições internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), e fez escola imediatamente na Europa e na América Latina.

Ao desempenhar uma função anticíclica nos sistemas de proteção social, o Estado evitou que se interrompesse a demanda – com mecanismos como seguro-desemprego e, até mesmo, oferta direta de postos de trabalho –, o que dava poder de compra ao consumidor e sustentava a economia.

Da mesma forma que ocorreu na Primeira Grande Guerra, a Segunda Guerra Mundial favoreceu o espírito interventivo do Estado na economia, diante da carência alimentar decorrente do conflito e da necessidade de aprovisionamento logístico, com medidas de transformação da indústria, de imposição de racionamento alimentar e de restrição à liberdade individual.

Contudo, após o segundo grande conflito houve o estabelecimento de uma ordem mundial diferente da que foi posta no primeiro, com o início da Guerra Fria, a reconstrução da Europa (pelo Plano Marshall), o processo de descolonização da África e a criação de um sistema consolidado de instituições internacionais dotadas de maior efetividade em relação à paz e à segurança, aos direitos sociais, à saúde coletiva e à educação.

Como consequência, muitas constituições promulgadas na segunda metade do século XX deram tratamento sistematizado à proteção de direitos sociais. Além disso, os países esforçaram-se em reconhecer e dar eficácia a declarações de direitos envolvendo a ordem econômica e social, como o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, da ONU.

Na seara constitucional, em que pese a importância das anteriormente referidas Constituições do México (1917) e de Weimar (1919) na declaração de direitos sociais, deve ser reconhecido que a Lei Fundamental de Bonn, da Alemanha de 1949, deu um novo impulso, explicitamente qualificando o Estado Democrático de Direito como social e estabelecendo princípios jurídicos retores da atuação do poder público na intervenção da ordem econômica e social, além de dar tratamento global à proteção dos direitos sociais.

A Constituição alemã de 1949 inaugura um novo padrão na integração dos direitos sociais e na visão integral de proteção da pessoa, passa a exigir papel mais ativo do poder público na garantia e proteção dos direitos fundamentais, a partir do vetor moral da dignidade da pessoa humana. O modelo foi seguido, na Europa, pelas Constituições de Portugal (1976) e da Espanha (1978), que vieram a influenciar dogmaticamente a elaboração da Constituição brasileira de 1988.

No âmbito internacional, a Carta do Atlântico (Estados Unidos da América e Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, 1941), assinada anteriormente ao ingresso norte-americano na Guerra (e antes da criação da ONU), destacou, nas cláusulas 5ª e 6ª, a decisão de estabelecer a colaboração mais completa entre as nações no domínio econômico, a fim de assegurar a todos as melhores condições de trabalho, uma situação econômica mais favorável e a previdência social;  e a busca por uma paz que proporcionasse, no interior das nações, a proteção contra a necessidade.

Portanto, com o olhar mais à frente do término do conflito, a assinatura Carta do Atlântico demonstrou que duas nações protagonistas no cenário internacional reconheciam que o restabelecimento da paz e da segurança de longo prazo não prescindiria de um novo olhar sobre a necessidade humana, a exigir atuação mais ativa dos Estados.

Logo a seguir, a Organização Internacional do Trabalho publicou a Declaração da Filadélfia em 1944, propondo-se a utilizar institucionalmente sua expertise para colocar em ação os objetivos das cláusulas 5ª e 6ª, da Carta do Atlântico (Organização Internacional do Trabalho, 1944).

Por fim, com a criação da Organização das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 fez alusão, nos artigos 22 e 25, ao direito à segurança social e à proteção contra riscos sociais (Organização das Nações Unidas, 1948).

É relevante destacar a conexão existente entre a política do New Deal nos Estados Unidos, a Carta do Atlântico e a inserção da proteção de direitos sociais na Declaração Universal dos Direito Humanos da ONU, tributada à visão do Presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt sobre a importância de a pessoa tornar-se livre de necessidades (freedom from want).

Com base nisso, pode-se afirmar que o Welfare State surge em decorrência do ambiente fático da primeira metade do século XX: as duas Grandes Guerras e o enfrentamento da crise de 1929, com a prevalência do pensamento de Bretton Woods (John Maynard Keynes e Harry White) da economia capitalista.

O liberalismo social, a rigor, não se distancia do que sempre pretendeu o pensamento liberal, pois este último também tem por objetivo o desenvolvimento livre do indivíduo, o que não poderia ser alcançado nem pelas experiências de implementação de estados socialistas e nem pelas do autoritarismo fascista.

De um lado, o estatismo leninista se empenhou em destruir o capitalismo e a liberdade individual; de outro, o fascismo não se importava em impor sacrifício à democracia para salvar o sistema capitalista. O que restava ao liberalismo era se remodelar a partir das ideias de Keynes para, mantendo os padrões da estrutura do Estado Democrático de Direito, potencializar a dimensão dos direitos fundamentais pelo reconhecimento de direitos sociais prestacionais, mediante a intervenção do poder público na economia de maneira subsidiária, sem ruir o pilar da autonomia privada: o desafio foi compatibilizar a liberdade com a justiça social.


Marcelo Tavares

Professor Associado da Faculdade de Direito da UERJ. É Doutor em Direito Público pela UERJ/Paris II e Juiz Federal